
Distúrbio, medo e autoconhecimento: uma identificação sadomasoquista
Publicado em: 28 de julho de 2016
“Sade e Sacher-Masoch deram nome ao que por muito tempo foi considerado distúrbio pelos médicos e psiquiatras: sadismo e masoquismo, respectivamente. E tratados como tal, atravessaram os séculos como perversões consideradas dignas de repreensão, um tabu que até hoje é visto com um pouco de medo – medo de ser diferente, medo da dor, medo de se identificar.”
*Rafa dos Santos
As referências mais antigas da dor como prazer datam de três mil anos antes de Cristo, mas, de lá para cá, foi-se escondendo uma série de práticas e desejos íntimos sob a máscara comum do fetichismo, ou seja, o sentir-se atraído por algo que vai além do corpo e atinge ambientes, sensações, contextos.
Mas, na história do fetichismo, nem tudo o que reluz é prazer. Em 1785, Donastien Alphonse François de Sade, o marquês de Sade, foi encarcerado na prisão da Bastilha. Na época, Napoleão Bonaparte considerava as ideias defendidas pelo francês como ateístas e controvérsias.
Mas nem mesmo a prisão foi capaz de reprimi-lo por completo. Lá, ele escreveu a obra “120 Dias de Sodoma”, na qual aristocratas raptam crianças e as prendem em um castelo, onde são violentadas, abusadas sexualmente e forçadas a servirem os convidados.
Cento e um anos mais tarde, em 1886, o austríaco Leopold Ritter von Sacher-Masoch foi apontado como “psicopata sexual” por causa dos comportamentos vistos como pervertidos em seu romance “A Vênus de Peles”.
A história gira em torno de uma longa discussão de dois jovens apaixonados que disputam o domínio de um sobre o outro. O desfecho é a escravidão consensual de um dos personagens, que atinge seu primeiro orgasmo enquanto é surrado humilhantemente.
Sade e Sacher-Masoch deram nome ao que por muito tempo foi considerado distúrbio pelos médicos e psiquiatras: sadismo e masoquismo, respectivamente.
E tratados como tal, atravessaram os séculos como perversões consideradas dignas de repreensão, um tabu que até hoje é visto com um pouco de medo – medo de ser diferente, medo da dor, medo de se identificar.
É realmente diferente, mas nem tanto. Pelo menos desde os anos 1980, foi-se formando no Brasil uma comunidade de simpatizantes a práticas e formas diferentes de alcançar o orgasmo, sem a necessidade do sexo e da penetração em si.
Surgiu, assim, a categoria “SM” (ou sadomasoquismo), com práticas como couro, podolatria, spanking e muitas outras.
“Ainda que assumido por uma minoria, entre 15% e 25% dos adultos americanos e europeus dizem praticar alguma forma de sadomasoquismo com frequência.”
Por aqui, foi só na década de 1990 que homens e mulheres começaram a divulgar pela internet esse estilo de vida que viria a ser chamado de BDSM, sigla para “Bondage” (imobilização dos movimentos por cordas, algemas e outros materiais), “Disciplina” (regras restritivas), “Dominação” e “Submissão” (a prática de servir e ser servido), “Sadismo” (prazer em causar dor) e “Masoquismo” (prazer em sentir dor).
Sobre a dor, “é tudo um grande teatro”, dizem os dominadores. Diferentemente das práticas extremas e assustadoras vistas nos livros antigos, nada acontece sem que todos os participantes entrem em comum acordo, baseados no conceito do SSC: São, Seguro e Consensual – existe, por exemplo, a palavra de segurança, que garante que nenhum limite é ultrapassado.
No grande cenário de interpretação BDSM, ao contrário do que se pensa, não se trata de causar e sentir dor, mas, talvez, do tipo mais cuidadoso de dar e receber prazer. E não é sexo, são cenas!
E, quanto à identificação, desta vai ser difícil fugir. Ainda que assumido por uma minoria, entre 15% e 25% dos adultos americanos e europeus dizem praticar alguma forma de sadomasoquismo com frequência.
Esse é o resultado do cruzamento das pesquisas mais recentes do Instituto Kinsey, da Academia Americana de Sexólogos Clínicos, do Diário de Medicina Sexual de Berlim e da Associação de Tratamentos Sexuais do Canadá.
Mas sabe o que representa uma aproximação ainda maior? Um efeito que nem os polêmicos Pedro Almodóvar e Lars von Trier conseguiram em suas películas, mas que pode ser visto na repercussão dos vários tons de best-sellers da britânica E. L. James.
Chicotes, algemas, velas derretendo, mordaças, controle mental, tapas, pisadas, flagelação… Divas já cantaram o tema, novelas globais já exploraram o assunto, megaeventos como o BDSMCamp chegaram ao Brasil.
Uma minoria, ainda que tímida, já experimenta outros caminhos para a satisfação, e está na hora de mostrá-los mais ativamente a uma sociedade que começa a enxergar o erotismo de forma menos vulgar, mais sublimemente conectada à natureza do corpo.
Como Sade e Sacher-Masoch 200 anos atrás, é preciso sair do armário mais uma vez.
*Rafa dos Santos é jornalista e, apesar de ter se especializado em vinhos, gastronomia e métodos alternativos de marketing digital, está sempre em busca de projetos ligados ao biodinamismo e à sexualidade, naturalismo e quebra de tabus.
** Fotos por Vi Grunvald – Confira outras fotos do BDSMCamp